Muito Além dos Festejos

 O Jogo daS Identidades na 
Marujada de Curacá-BA
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Lá em matagoa, lá em Matagoa! Viva a mulatinha, já vi coisa boa, já vi coisa boa! Viva os soldados que andaram aqui, viva os soldados que andaram aqui! ...


Viva nosso rei do Aracati, viva nosso rei do Aracati, do Aracati, do Aracati! ...e o piloto vai dizendo, quem vai na proa é o general! Sinhá madalena, sinhá madalena, está na hora de marchar!” (música da Marujada)


      Falando sobre o Brasil dos tempos coloniais, Vainfas e Souza (2002:58) reafirmam que “as festas foram, por excelência, lugar de sociabilidade: um espaço que permitia tanto reafirmar laços de solidariedade quanto demarcar especificidades e diferenças entre os indivíduos e os grupos”. As irmandades e confrarias, através da realização das suas festas e procissões, se constituíram historicamente como instituições importantes na organização dos negros enquanto grupo identitário. Através dessas instituições, os negros puderam estar em contato com a sociedade abrangente e ao mesmo tempo fortalecer os laços identitários. Falando sobre o luxo das roupas usadas nas festas religiosas organizadas pelas irmandades de negros e mulatos, Vainfas e Souza (ibidem) afirmam que “... cumpriam dupla função, quer para marcar o lugar dos dirigentes frente aos outros membros da irmandade, quer na busca de um espaço visível na sociedade colonial. Assim, as fantasias e as danças nas procissões revelavam representações que faziam de si mesmos e das culturas com as quais conviviam”. As festas de coroação dos reis negros – as quais ocupavam um lugar importante nas comemorações religiosas do Brasil Colonial – reeditavam certos traços importantes das culturas africanas e permitiam uma afirmação da presença negra no contexto cultural brasileiro.


      Ao organizar-se para o exercício e construção da festa, os grupos puderam reforçar a sua identidade e ao mesmo tempo demarcar a sua especificidade ou diferença em relação aos outros grupos sociais que formam a diversidade do contexto sócio-cultural. De acordo com Rita Amaral, “...Sendo mediação privilegiada por conter em si a síntese de mediações diversas, a festa se mostrou, no período colonial, como tradução, ponte forte entre culturas, já que todas elas conheciam e compreendiam, apesar da diversidade, este termo universal” (AMARAL, 2001:14). Dessa forma, podemos conceber que a festa tenha sido importante elemento para uma política de trocas simbólicas que ajudaram a configurar os arranjos sociais no Brasil durante o período escravista e após a abolição. 
 

      Voltando nosso olhar para o tempo contemporâneo, uma problemática que se mostra importante em relação às festas brasileiras de um modo geral e, especificamente, em relação àquelas que guardam uma relação de origem com as populações negras é o modo como acontece alguns processos de resignificação no âmbito das mesmas e na sua relação com as comunidades e o lugar onde acontecem. Tais resignificações permitem questionar se festas como congadas e marujadas, que possuem, originalmente, uma relação com a afirmação da identidade negra, ainda mantém essa função ou se outros processos identitários passam a ser acionados através da sua realização. Para pensarmos tal questão um dos caminhos possíveis é a escolha de casos cuja análise permitam a percepção dos processos de resignificação e o lugar do negro – enquanto integrante e enquanto representação – nas mesmas. 
 

      As análises dos casos da Marujada da cidade de Curaçá-Ba e dos Congos de Juazeiro-Ba, de cujas práticas falamos acima, permitem considerar que as mudanças e processos de resignificação nas festas populares acompanham as mudanças nos padrões de relacionamento entre os diferentes grupos que compõem a sociedade. Se pensamos na sociedade brasileira do período colonial e também dos primeiros anos da república, temos que lembrar o caráter hierárquico das relações sociais. Por exemplo, a própria existência de irmandades de pretos e mulatos, revelam essa hierarquização. Embora tenham encontrado nessas instituições um espaço de sociabilidade, os negros tinham as suas próprias irmandades, geralmente cultuando São Benedito ou Nossa Senhora em algumas de suas denominações (N.S da Conceição, N.S do Rosário, N.S da Boa Morte, etc,.). A demarcação das diferenças e a construção de identidades étnicas e de classe era parte da própria lógica hierárquica da socidade daquele período.


      No contexto do semi-árido brasileiro, e especificamente na região do sub-médio São Francisco, do lado baiano do rio, onde se encontram as cidades de Juazeiro e Curaçá, a hierarquização das relações sociais expressou e influenciou o modo como se organizou as festas no período colonial e mesmo durante a primeira metade do século XX. O sociólogo Esmeraldo Lopes, estudando os processos históricos da região mencionada, apresenta um quadro de hierarquização social nos divertimentos da cidade de curaçá, a partir do qual podemos problematizar a respeito das mudanças nos padrões de hierarquização das relações sociais de um modo geral e, mais especificamente, nos divertimentos populares. O período abordado se estende até década de 60 do século XX. Segundo o autor, era comum haver festas em que só a elite podia entrar, ficando os pobres serenando na janela, olhando o divertimento dos ricos (LOPES, 2000:37). Tal informação, coletada através de relatos orais, nos leva a questionar como se daria hoje, tais hierarquizações ou se haveriam outras formas de diferenciação social no âmbito dos divertimentos populares, especificamente naqueles que são colocados sob a alcunha de festas da cultura popular. A resposta a esta pergunta se faz necessária, pois cada vez mais as estratificações sociais se tornam mais complexas, envolvendo outros critérios de diferenciação que, embora mediatizados pelo poder econômico, a ele não podem ser reduzidos. 
 

      Iniciada enquanto “festa de preto”, a Marujada foi emancipada à categoria de símbolo identitário municipal. Esse fato é expresso simbolicamente quando no final do século XX, São Benedito – padroeiro da Marujada - passa a ser co-padroeiro da cidade, dividindo o padroado com Bom Jesus da Boa Morte. Observa-se, assim, um reconhecimento por parte da igreja católica, da força do culto popular ao Santo, através da procissão e da marujada, ambas realizadas no final do ano. O santo dos marujos é oficialmente decretado pela igreja como o santo de toda cidade. Mas, não é só isso. Trata-se de uma apropriação simbólica envolvendo processos de ressignificação e que possibilitou a própria construção de uma identidade da cidade, pois a mesma passa a utilizar-se da marujada como referência para sua diferenciação em termos regionais. Outros fatos podem ser pensados como indicadores dessa apropriação. Por exemplo, na década de 1990, um projeto educacional ganhou o nome de “mãe Sérgia”, a matriarca que institucionalizou a marujada no início do século XX. Este projeto, inclusive, recebeu um prêmio da UNESCO que acabou destacando a cidade nacionalmente, nos fóruns especializados em Educação. Outro exemplo é que na mesma década de 1990, um grupo musical de rock da cidade de Curaçá, denominado “Bichos Escrotos”, composta por por jovens estudantes brancos, alguns da classe média local, adaptou uma das músicas da marujada com arranjos de guitarra, produzindo uma resignificação sonora da tradicão da marujada. 
 

      Tais fatos revelam que as velhas hierarquizações sociais, baseadas em identidades fixas, passaram por um processo de descentramento, acompanhando o descentramento das próprias identidades e da sua capacidade de arregimentar sujeitos. Nesse sentido, no caso em questão, a festa, em si mesma, não se presta ao papel de diferenciar um grupo que dela participa. Isso não é mais possível pois gente de todos os extratos da cidade realizam e participam da mesma festa. Esse fenômeno não é exclusivo da marujada. Pelo contrário, essa parece ser um tendência de muitas outras festas na região estudada e denuncia algumas mudanças nos padrões de relacionamento entre as classes na contemporaneidade. A mudança principal em relação ao contexto histórico estudado por Esmeraldo Lopes é que a diferenciação e a hierarquização passam a ser feitas dentro da própria festa, através de processos identitários de ordem coletiva, mas, que envolvem o indivíduo e a possibilidade que ele tem de acessar diversos significados e modos de sentir e de estar na festa. 
 

      Nesse contexto contemporâneo de produção/consumo de símbolos diversos e da vivência de múltiplas identidades – que consitui-se enquanto local e global ao mesmo tempo – onde acontece a festa da marujada, as hierarquias sociais e raciais continuam existindo, porém transversalizadas por múltiplos arranjos sociais, muitos deles fortuitos e temporários. É aqui que, retornando à questão anteriormente levantada, do lugar do negro nas festas populares em estudo, advertimos que as citadas mudanças nos padrões de relacionamento entre as classes, poderiam nos levar a interpretação de um certo amalgamamento étnico-racial e/ou de uma quebra ou superação de padrões racistas de hierarquia, se não fosse amplamento conhecido o fato de que a apropriação dos símbolos negros como signos de uma identidade mais abrangente, nacional ou regional, nem sempre contribuiu para o fim das hierarquizações racistas ou diminuição das desigualdades raciais (Cf. BOSI:1992 e ORTIZ: 1985). 

       No caso de Curaçá-Ba, as palavras de um ex-marujo pertencente a família que iniciou a festa e que liderou a marujada até a década de 1990, revela essa mesma percepção por parte de um sujeito-ator implicado diretamente no contexto de sua realização. O entrevistado ressaltou que a descriminação ou preconceito contra o negro não acabou e que teve que sair de curaçá para São Paulo para conseguir sobreviver dignamente, durante um tempo de sua vida. Disse também que o fato de ter sido líder da marujada não implicou e não implica em nenhum benefício material para ele. No caso, ele – o entrevistado – é um indivíduo. Mas, podemos estender essa mesma consideração para todos os negros que dançam a marujada. O entrevistado traduziu a consideração acima com a seguinte frase: “muita sala e pouca camarinha”, referindo-se ao modo como a cidade e os moradores de Curaçá tratam os marujos e os negros que se relacionam à origem da festa. Definitivamente, a frase do entrevistado expressou um sentimento de que a elite branca, que antes fazia festas fechadas e que não se “misturavam” muito, passou a orgulhar-se da marujada dos negros. Isso, porém, infelizmente, não implicou na superação de velhas hierarquizações sociais baseadas no preconceito racial. É todo mundo junto, mas, “cada um no seu cada qual”.


      A presença de múltiplas identidades nas festas populares parece variar a depender da força com que uma certa identidade normativa, geralmente conectada ao discurso da origem e da tradição, se apresenta para os sujeitos realizadores-participantes arregimentando os seus sentimentos e ações. Essa questão está também ligada ao modo como os líderes se relacionam com essa mesma identidade normativa, bem como ao contexto onde essa liderança é exercida. Nota-se ainda que o número ampliado de participantes envolvidos favorece a presença das múltiplas identidades no contexto da festa popular. No caso da marujada de Curaçá-Ba, os mais velhos relatam que a mesma envolvia pouca gente no início, tendo crescido ao longo dos anos, chegando a um ponto em que não está sendo mais possível “dominar o povo”, como dizem alguns entrevistados, se lamentando do pouco “respeito” de alguns marujos pelo sentido religioso da festa. 
 

      Mais uma vez o conceito identidade,na perspectiva desenvolvida por Stuar Hall (2002) se apresenta para permitir uma explicação que considere que os sentidos religioso e étnico-racial, valores contituintes de uma identidade negra ligada a origem da marujada, passaram, ao longo dos anos, na proporção do crescimento da própria festa, por um processo de descentramento que acompanhou mudanças nos padrões de relacionamento e de ritualização das hierarquias entre as classes, tendo essa identidade hoje que conviver com outras identidades e formas de identificação. Tal realidade se descortina a partir da interpretação do depoimento dado pela pessoa que exerce hoje o papel de coordenador da marujada. 

 



          “Por uma parte, foi bom, por uma parte, a mudança de (19)98 pra cá foi bom porque expandiu mais. Quando eu cheguei em 98 já tinha 150 marujos, eu vi na lista (...) Mas, por outra parte tem sido ruim porque muita gente não dança mais hoje por promessa, dança só pra satisfazer o vinho, a comida, talvez até por malandragem, porque a dança é bonita, porque quer passar o dia diferente, 31 de dezembro, mas, não sabe a importância que é a marujada pra gente. Talvez ela corra o risco de não ter mais valor nenhum, ela corre o risco de perder esse valor. Ela corre o risco de acabar. Ah não vai acabar porque tem criança dançando. Mas, onde vai ficar a valorização da marujada? Só para existir que tem? Só pra falar que existe aquela dança? E cadê a valorização cultural que tem e religiosa que tem? A mudança da marujada tem que existir dessa forma: o pessoal tem que ter mais respeito em dançar, tem que ter mais valorização, mais respeito, mais religiosidade, porque é uma dança cultural, popular, mas, é uma dança voltada para a religião e aí, partiu para a religião, você tem que ter o respeito, porque ali tem um santo, naquele momento, de veneração, certo, um santo negro que foi o protetor dos negros naquela época, porque é uma dança que veio de uma origem negra, então, tem que existir o respeito” 
                                                                            (Entrevistado Jairo da Silva Santos – Atual coordenador da Marujada)




A liderança entrevistada está entre aqueles que temem que a marujada, mesmo se mantendo viva enquanto festa da cidade, venha a perder, por completo, a presença da identidade religiosa e étnica como articuladora central dos saberes e fazeres dos marujos. Essa é uma preocupação que denota um legítimo posicionamento político dentro de um contexto que se configura a partir das escolhas e decisões que definem a forma de organização da marujada, bem como a sua relação com a sociedade.


       Tudo nos leva a crer que o crescimento da participação popular no cortejo da marujada foi se dando de forma negociada ao longo de sua história, principalmente a partir da década de 1980. Percebe-se que nesse processo novas identidades foram produzindo novos sentidos que foram sendo acrescentados aos modos anteriores de fazer, de sentir e de estar na festa. Está aí uma possibilidade de entendimento para a entrada das mulheres na marujada. Logicamente que a entrada dessas novas identidades não acontece sem nenhum conflito, como atesta algumas falas de marujos mais velhos e pessoas da comunidade que ainda dizem ser contra a inserção das mulheres no cortejo popular que sai as ruas no dia 31 de Dezembro. A mesma opinião é expressa na fala de uma outra entrevistada que apacece no documentário “Marujada: comunicação e folclore”, produzido por Larissa Brandão e Mirela Costa como trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social da UNEB – DCH III 1. No vídeo, a entrevistada manda um recado:
 



“Marujas! Deixem os homens. Num era só eles no começo?...”




As mulheres passaram a desfilar como marujas somente a partir de 2000. Antes, tal forma de participação era restrita aos homens. Essa mudança aconteceu através de uma votação entre os marujos, como conta um entrevistado que também aparece no vídeo citado:



       "A marujada era uma dança típica e exclusivamente do sexo masculino. Algumas mulheres passaram a se vestir de marujas e a acompanhar a marujada, elas não participavam do cordão, nas filas. Elas acompanhavam nas laterais, andando e coisa. Mas aí,em 2000, em uma reunião, elas começaram a chiar que queriam participar, queriam ter o direito. A gente fez uma reunião e os homens – inclusive o voto decisivo foi o voto de Toinho de Mãe Sérgia, ele é quem foi, quem deu a palavra final e ele partiu do princípio de que 'Olha Paulo César, o mundo tá evoluindo, a constituição dá direitos iguais, porque as mulheres não podem participar? Aí o meu voto é favorável para ela participar'. Com o voto de Toinho, os outros encabeçearam e foi favorável pela participação das mulheres”.



       Portanto, na marujada de Curaçá-Ba, que historicamente experimentou um processo de mudança, principalmente em termos de participação popular, a identidade negra, ancorada em base religiosa e relacionada ao discurso da origem e da tradição, estaria passando por um proceso de descentramento, isto é, deixando de ser central. A marujada passa a ser palco para a vivência de outras identidades, como a identidade de gênero, e de outra formas de identificação, como é caso dos marujos que dançam apenas pela festa ou “só pelo vinho”, como categorizou um dos nossos entrevistados. Esse deslocamento da identidade negra na festa da marujada, acredito eu, revela o próprio descentramento do sujeito pós-moderno (HALL:2002), o qual se caracterizaria pela vivência de múltiplas identidades. 
 

      Abrindo mão de um conceito essencialista e estático de tradição e apropriando-se da noção de tradição inventada (HOBSBAWM:1984), podemos ver que ao permitir que outros sentidos sejam compartilhados no seu âmbito, a festa da marujada não deixa de manter uma relação e um discurso implicado com uma certa tradicionalidade que a define, enquanto manifestação da cultura popular. Palco de uma política de identidade que a coloca no centro das temáticas da sociedade contemporânea, a festa dos marujos de Curaçá-Ba, consegue manter-se e ainda ser reconhecida como festa popular e tradicional. 
 

       O fato é que a marujada de curaçá é uma manifestação de uma beleza estética singular, muito cheia de vida e que tem se caracterizado por essa capacidade de articular múltiplas identidades e formas de indentificação. Talvez seja essa a explicação para o seu crescimento contínuo em termos de participação popular e para a sua emancipação, de uma festa restrita a um pequeno grupo de homens negros a uma manifestação que participa da construção da identidade de todo um município e que é aberta à participação de homens e mulheres, de todas as cores e idades. Tentamos mostrar acima que tal emancipação, que também pode ser lida como uma apropriação simbólica, bem como todas as mudanças observadas na marujada de Curaçá-Ba, não acontecem sem uma política interna que envolve negociações e conflitos de idéias e interesses. Tal política interna – que se faz através de processos identitários dinâmicos, os quais envolvem tanto o indivíduo quanto o grupo, dialogando com a contemporaneidade – define o modo como se faz a marujada hoje e é quem vai definir o seu futuro.





CONSIDERAÇÕES FINAIS

“O signo não coincide com a coisa ou o conceito. Na linguagem filosófica de Derrida, poderíamos dizer que o signo não é uma presença, ou seja, a coisa ou o conceito não está presente no signo”
(SILVA, 2000, p.78)

       Considerando como pertinente as considerações de Silva (2000) de que o signo nunca trás integralmente a coisa ou o conceito representado, reforça-se a idéia da insuficiência infinita das nossas interpretações das ações (atos simbólicos) dos congos de Juazeiro, da Marujada de Curaçá ou de qualquer outra coisa que observemos enquanto pesquisadores (GEERTZ:1989). No entanto, essa insuficiência, para o nosso consolo, não é somente por culpa nossa, que sempre ficamos com a sensação de que poderíamos perguntar mais, anotar mais, escrever mais, etc,. A insuficiência da interpretação vem da própria dinâmica e historicidade dos significados, os quais, não sendo entidades fixas e absolutas, acionam processsos de identificação que para se efetivar (pelos menos temporariamente) enquanto identidade, sempre necessitará de outros processos de produção da diferença.

       Se tomarmos os contextos de realização-construção dos Congos de Juazeiro e da Marujada de Curaçá a partir da leitura das suas ações enquanto atos simbólicos, podemos visualizar que assim como os signos criam uma identificação – ainda que temporária e relacional - entre ele mesmo e a coisa representada e ao mesmo tempo uma difenciação com outros signos, os “congos” e os marujos produzem-vivenciam algumas atividades que fortalecem o sentimento de grupo (um processo de identificação), ao mesmo tempo em que os destaca enquanto grupo específico perante as pessoas que os vêem nas ruas (um processo de diferenciação).

       Como citamos no decorrer desse texto, algumas teses bastante difundidas hoje dão conta de que as identidades no mundo contemporâneo são múltiplas e performativas (HALL, 2002; SILVA, 2000). No caso das identidades vivenciadas nas festas e folguedos populares da micro-região de Juazeiro-Ba, nossos dados sobre a marujada de Curaçá e os Congos de Juazeiro, parecem revelar que uma certa dispersão dos sentidos provocada pela possibilidade de transitar por múltiplos campos identitários – fato presente em algum grau em todas as festas observadas na pesquisa - parece variar a depender de alguns fatores, dentre os quais podemos destacar o modo como se processa a liderança na organização dos eventos e a força com que os sujeitos são arrebatatados por uma identidade histórica de origem que geralmente está conectada ao discurso da tradição, a qual pode ser considerada como identidade normativa e/ou performativa. Essas duas variáveis, na verdade, estão conectadas, pois as lideranças também podem ser tradicionais ou não, a depender do seu envolvimento com a identidade normativa. 

        Essa interpretação se desenha a partir do fato que enquanto algumas festas se reproduzem em torno de um núcleo tradicional, geralmente familiar, no sentido da sua organização (Congos de Juazeiro), outras se desconectam parcialmente desse núcleo fundador (Marujada de Curaçá). Nesse sentido, os dados parecem indicar que quanto mais desapegada desse discurso da tradição e de tudo que ela representa em termos de reprodução de uma identidade performativa (SILVA: 2000) das relações sociais, principalmente em relação ao exercício da liderança, mais a festa popular se apresenta, também, como espaço de identidades múltiplas e dispersas.

     Analisando a Marujada de Curaçá-Ba em comparação com os Congos de Juazeiro – ainda que esta comparação seja feita de forma precária – vemos que a marujada iniciada por uma família de pessoas negras, provavelmente no final do século XIX, foi praticamente absorvida pela cidade e seus habitantes como uma representação identitária municipal. A impressão que fica, a partir das entrevistas e observações etnográficas da Marujada de Curaçá-Ba (2007-2008-2009), é que a mesma, na medida em foi passando o tempo, com a morte e o afastamento de suas lideranças de origem e mediante negociações de uma micro-política interna que orienta escolhas e decisões, foi se tranformando em um espaço mais diverso, favorecendo o surgimento de múltiplas formas de identificação com o seu complexo de atividades. 

      No caso dos congos, as primeiras observações realizadas no ano de 2009 e 2010, levam a crer que a força da tradição representada pela figura de sua liderança (Govéi) é direta e feita diante de um grupo relativamente pequeno de pessoas (cerca de 40, quase todas aparentadas), garantindo assim uma maior unidade nas formas de identificação com o evento (destacando-se a identificação religiosa e o sentido de grupo específico) tanto considerando os próprios “congos”, quanto as pessoas que com eles interagem nos seus eventos. 
 
       De uma ou de outra forma, cada um dentro de sua configuração sócio-cultural específica, os grupos festivos por nós observados, evidenciam a presença viva das tradições deixadas pelo elemento negro na formação histórico-cultural da micro-região de Juazeiro-Ba. Temos, portanto, a honra de deixar registradas através desse trabalho de pesquisa, nossas impressões a respeito da vivacidade das tradições afro-brasileiras nessa região da Bahia ainda pouco estudada na perspectiva das africanidades, em comparação com a região metropolitana de Salvador e Recôncavo baiano.



1-Este vídeo utilizou-se do banco de imagens do projeto de pesquisa coordenado por mim denominado “Identidade e Diferença na Cultura Popular: um estudo sobre festas populares e relações étnico-raciais na micro-região de Juazeiro-Ba” - Sub-projeto “Reflexões e alternativas sobre o uso da imagem na pesquisa etnográfica de festejos populares: um estudo de caso na Marujada de Curaçá-BA”, do bolsista Allan Richards de Melo Morais.


 

                                                                                                                                    Por: Profº Paulo Soares.



  • BIBLIOGRAFIA



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